sexta-feira, 12 de julho de 2019

Entrevista do jornal "Correio de Atibaia" com Márcio Zago, curador da Semana André Carneiro.

Em 2019 acontece na cidade de Atibaia a 6ª Semana André Carneiro. Sob curadoria de Márcio Emílio Zago, o evento objetiva apresentar a vasta obra do artista dos “sete instrumentos”. O nome de André Carneiro ecoa hoje nos mais diversos cantos do mundo. Confiram a entrevista com o curador e participem do evento. Vale a pena conferir. (Reportagem realizada em 03/05/2019)


























Juliana Gobbe – Como é fazer a curadoria de um acontecimento tão importante como a Semana André Carneiro?
Márcio Emilio Zago – Em primeiro lugar, me chamou a atenção o “tão importante”. Eu também acho que é importante e fico feliz em saber que outros também pensam assim. Esse reconhecimento só aumenta a minha responsabilidade. O André foi o artista local que alcançou maior projeção e reconhecimento mundial, embora ainda pouco conhecido na cidade. Seus trabalhos estão espalhados por diversos países. Só na literatura, os contos e poemas foram traduzidos para dezesseis países. Na fotografia, sua obra mais conhecida, “Trilhos”, fica em exposição permanente no Tate Gallery, em Londres.  Sem falar dos trabalhos como artista plástico, cineasta, etc. Fazer a curadoria de um artista tão completo demanda muita responsabilidade. O que proponho como curador é tornar o trabalho do André conhecido e reconhecido na cidade. É aqui que eu moro e trabalho. Não saberia fazer de outra forma. A obra do André precisa ser melhor estudada nos meios acadêmicos e essa não é minha praia, não tenho curso superior, mas imagino que tornando público seu trabalho, naturalmente isso irá acontecer.

Juliana Gobbe – Em quais circunstâncias se deu a ideia de criar este evento na cidade?
Márcio Emilio Zago – Sempre pensei em fazer uma história em quadrinhos com o texto de ficção científica do André. Em 2004 tomei coragem e liguei pra ele, que morava em Curitiba. Ele adorou a ideia e a partir daí nos correspondemos por e-mail. Passamos a nos encontrar todo final de ano, quando ele vinha pra Atibaia rever o filho Henrique e a Lina, sua ex-esposa. Nesses encontros é que surgiu a ideia de fazer alguma coisa aqui na cidade em relação a seu trabalho. Eu não me conformava com fato do André ter tantas qualidades e continuar desconhecido em sua própria terra natal. Imaginei que tendo como suporte o Garatuja, eu poderia fazer alguma coisa. Com o aval do André comecei a trabalhar. O apoio maior veio do Mauricio, seu segundo filho, que mora em Curitiba. Tornamo-nos grandes amigos. Sem ele não seria possível realizar o evento. Juntei um punhado de livros do André e coloquei na mesa do então Diretor de Cultura Charles Giraldi, dividindo com ele essa angústia. Daí surgiu a ideia da Semana, apoiado pelo então Secretário de Cultura Luís Otávio Frittoli, o Tatah, que também se envolveu no projeto. Eles conseguiram até passagem de avião para trazer o André e o Mustafá para a primeira Semana que realizamos na cidade. O Centro de Convenções estava em reforma e o evento aconteceu no CIEM. Sem que ninguém esperasse, essa foi a despedida do André à cidade. Ele faleceu meses depois. O que conforta é que ele pode receber as homenagens em vida, ainda lúcido. Foi emocionante vê-lo obter o merecido reconhecimento pelo imenso trabalho que prestou à cidade. Eu me sinto muito feliz de ter propiciado esse momento.

Juliana Gobbe – André Carneiro foi um artista de “sete instrumentos”. Na sua avaliação, a literatura prevalece como sua inserção mais importante na arte?
Márcio Emilio Zago – É o que dizem os especialistas. Li em vários lugares que a literatura foi o que ele fez de melhor. O próprio André falava isso. Principalmente em relação a sua obra poética.  Com certa familiaridade que acabei tendo ao realizar essa curadoria, fico cada vez mais confuso a esse respeito. Suas fotos são geniais. Seus filmes muitos bons, ele também desenhava bem e sabia tudo de cinema. Talvez na literatura ele tenha recebido maior reconhecimento, tanto no Brasil quanto no exterior. No cinema, por exemplo, ele não teve muita sorte, embora tenha realizado muita coisa boa. Nas artes plásticas foi igual. Outro termo que sempre vejo ao definir o André, além de ser o artista de “sete instrumentos” e de ser “O Da Vinci brasileiro”, por seus múltiplos talentos e principalmente por sua inteligência.

Juliana Gobbe – Em 2019  o jornal Tentativa completa 70 anos. Como se deu a iniciativa que, como se sabe envolveu literatos do Brasil inteiro?
Márcio Emilio Zago – “Tentativa” é uma dessas coisas inexplicáveis. Acho que nem o próprio André soube esclarecer isso direito. Ele sempre tangenciou a resposta ao falar do “Tentativa”, argumentando tratar-se de um “arroubo juvenil”. Ele tinha somente 27 anos quando editou, a Dulce e o César eram quase dez anos mais novos. A verdade é que eles conseguiram um feito que provavelmente nunca mais se repita. Comparativamente é como formar um time de craques de futebol numa cidadezinha pequena. Imagine um time de várzea com Pelé, Sócrates, Garrincha… Foi isso que ele fez. Trouxe para a cidade o que havia de melhor na literatura e na intelectualidade nacional. Com isso introduziu Atibaia no mapa do mundo através da cultura. Isso é inédito. O comum são os artistas saírem de sua terra natal para conquistar seu espaço. André trouxe o mundo para Atibaia. Fica mais heroico ainda se imaginarmos as circunstâncias em que o “Tentativa” foi produzido: De Atibaia a São Paulo levava de três a quatro horas de viagem. A telefonia era precária, o correio paquidérmico. Celular, computador e telefonia móvel existiam somente nos contos de ficção científica que ele iria escrever alguns anos mais tarde.

Juliana Gobbe – Qual é o legado de André Carneiro para o Brasil?
Márcio Emilio Zago – Talvez o André já seja mais admirado lá fora do que no Brasil. Seu editor, o Silvio Alexandre (que me ajuda na realização da Semana), conta que o André é venerado na Suécia, onde seus contos foram publicados no final dos anos 1970 pela revista Jules Verne Magasinet, uma das mais importantes revistas de ficção científica do mundo. Seu livro Piscina Livre também foi publicado lá. Acho que no Brasil ele é um artista a ser descoberto. É difícil prever como (e se) isso realmente irá acontecer. Seu trabalho não é digestivo, como esperam o senso comum, mas acredito que sua obra sempre terá admiradores. Ela dificilmente irá envelhecer. O que me cabe é difundi-lo aqui na cidade. O fato de a Semana André Carneiro estar na sexta edição já considero uma conquista.
Fruto de um árduo trabalho de convencimento, onde muitas vezes o óbvio parece o inverso. O poder público tende a nivelar a cultura somente pelo fator quantitativo. Artistas como o André ficam em situação de desvantagem em relação aos artistas de maior apelo popular, quando deveria ser justamente o contrário. Quantas cidades têm um artista como o André? A cidade poderia se beneficiar com isso, como faz São João da Boa Vista, que realiza há mais de quarenta anos a Semana Guiomar Novaes. Salvo engano, o segundo maior evento do interior paulista em termos de apoio institucional. Só perde para o Festival de Inverno de Campos do Jordão. Espero que um dia a Semana André Carneiro ganhe essa proporção e que sua obra faça parte do cotidiano da cidade e principalmente do cotidiano escolar.  Se conseguir uma parte do que proponho já estou satisfeito.

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