sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

André Carneiro – O artista de Atibaia

Foto de Dulce Carneiro - 1968






































Essa biografia de André Carneiro destaca o período de 1922 a 1972, quando deixa Atibaia e passa a morar em São Paulo. São cinco décadas de intensa participação na vida social do município, principalmente na área cultural. Diferente de muitos artistas que abandonam a cidade natal para fazer carreira nos grandes centros, André permaneceu na cidade, contribuindo de forma inquestionável na criação da identidade cultural do município.

André teve uma longa e profícua produção em diferentes áreas: Literatura, cinema, artes plásticas, fotografia. Foi ainda hipnotizador, artista gráfico e publicitário. Na prosa e na poesia seu nome figura como um dos mais conceituados escritores nacionais. Foi um dos precursores da ficção científica nacional e importante poeta da geração de 45 - a terceira geração Modernista de 1922. Na fotografia é considerado pioneiro da fotografia modernista no Brasil e no cinema atuou de forma expressiva em diferentes períodos de sua vida. Nas artes plásticas realizou colagens, pinturas, esculturas e desenvolveu a técnica que chamou de Pintura Dinâmica, onde diferentes reações químicas alteravam esteticamente as imagens aprisionadas em compartimentos de vidro.

André Carneiro nasceu em Atibaia no dia 09 de maio de 1922. Seu pai, Recaredo Granja Carneiro, foi provedor da Santa Casa, vereador, Diretor do Clube Recreativo e proprietário da Casa Recaredo, loja de material para construção, que depois foi mantida pelo próprio André. Sua mãe era Dona Engrácia de Almeida Carneiro, descendente do bandeirante Bartolomeu Bueno. Tinha quatro irmãs: Odete e Odila Carneiro, por parte de pai e Maria Francisca e Dulce. Dulce Carneiro também foi poeta e fotografa de renome.

André Carneiro fez o curso primário no Grupo Escolar José Alvim, onde foi aluno da professora Aracy Bueno Conti. Em 1939, aos 17 anos, vai, em regime de internato para o Colégio Arquidiocesano, em São Paulo. Ali, no prédio da Praça Tiradentes, conviveu com religiosos de orientação marista, onde faz seus estudos ginasiais e secundários adquirindo ampla cultura literária, até que graves doenças o trazem de volta a cidade. Teve pleurisia. No tempo de repouso forçado aproveitou para ler tudo que podia, mas nunca ingressou num curso superior.

Restabelecido e morando novamente na cidade passa a ter enorme atuação em diferentes áreas, principalmente como artista. Em 1943 começa a escrever crítica politica nos jornais da cidade e desperta o interesse do poeta Domingos de Carvalho Silva, que abre espaço para seus artigos no Correio Paulistano. Sua obra começa a ter repercussão no meio intelectual.

Antevendo o clima pós-guerra a classe empresarial, comercial e demais membros da sociedade Atibaiense, influenciados pelo empresário César Mêmolo, criam a SADA – Sociedade Amigos de Atibaia. A SADA foi responsável por inúmeras ações de transformação social, cultural e politica do município, destacando a classificação de Atibaia em Estância Climática, e posteriormente em Estância Hidro Mineral. André Carneiro foi Secretário da SADA.

Em 1946, com 24 anos, André Carneiro começa a liderar um grupo de jovens artistas locais com ações que iriam marcar a cidade para sempre. Ações que abrangiam diferentes áreas como a literatura, cinema, artes plásticas e fotografia. O grupo tinha entre seus componentes as irmãs Dulce, Maria Francisca, Odila e Odete Carneiro. Tinha ainda César Mêmolo Junior e seus primos Elisa Helena, Maria Amélia e Amadeu Lana, além de Luiza Lima de Oliveira Chaves e João Luís Chaves. Outros artistas também se juntaram a eles por determinado tempo, como Oswaldo Barreto Filho e Aldemir Martins.

Ainda em 1946, André Carneiro e os amigos César Mêmolo Junior, Donozor Lino e Helvécio Scapim iniciam um pequeno acervo literário no então existente Clube Comercial. As doações de outras pessoas engrossaram o acervo, que propunha ser aberto ao atendimento da população. O empreendimento cresceu sendo mais tarde doado à SADA - Sociedade Amigos de Atibaia, que depois transferiu a Prefeitura, originando a atual Biblioteca Publica Joviano Franco da Silveira. 

Em 1947, com os escritores e poetas Péricles Eugênio da Silva Ramos, Domingos Carvalho da Silva e João Acioli, funda a Revista Brasileira de Poesia, que divulgava os preceitos estéticos do que foi conhecida mais tarde por Geração de 45.

Em 1948, junto com Péricles Eugênio da Silva Ramos, Domingos Carvalho da Silva, Mário da Silva Brito e Geraldo Vidigal organiza o 1º Congresso Paulista de Poesia que aconteceu na Biblioteca Municipal de São Paulo. André foi o representante do interior do estado (Atibaia) defendendo tese sobre a recepção da poesia e o grande público. Foi eleito Secretário do Congresso e teve intensa participação nos debates, ganhando destaque e atenção de Oswald de Andrade. Tornaram-se grandes amigos e Oswald passou a visitá-lo com frequência em Atibaia. Nesse congresso foi usado pela primeira vez o termo “Geração de 45”, para designar a terceira geração de modernistas. A primeira foi de 1922 a 1930 e a segunda de 1930 a 1945.

Ainda em 1948, por deliberação do próprio Congresso, e influenciados pela Revista Brasileira de Poesia foi criado em São Paulo o Clube da Poesia, que tinha em seus quadros importantes expoentes da poesia moderna como José Geraldo Vieira, Sérgio Milliet, Menotti Del Picchia e outros. O poeta e ensaísta Cassiano Ricardo foi eleito Presidente e anos depois André Carneiro seria Diretor de Divulgação do Clube da Poesia que tinha a proposta de promover conferências, cursos e publicações.

Pouco depois André Carneiro e o grupo de artistas locais organizam o Clube de Poesia de Atibaia, associado ao Clube de Poesia de São Paulo. Em agosto de 1948 o Clube de Poesia local, o jornal O Atibaiense e o Ginásio Atibaiense promovem um recital de poesia trazendo para cá uma caravana de intelectuais paulistas filiados ao Clube de Poesia de São Paulo. Estiveram presentes Oswald de Andrade, José Geraldo Vieira, Aldemir Martins, Jamil Almansur Haddad entre outros. O evento aconteceu no Salão Nobre do recém-inaugurado Ginásio Atibaiense (hoje Escola Major Juvenal Alvim).

Em 1949 publica seu primeiro livro de poesia “Ângulo e fase”.  Escrito na cidade, o livro foi muito bem aceito, ganhando prêmios e homenagens com o sucesso alcançado. Ainda no mesmo ano, 1949, em companhia da irmã Dulce Carneiro e do amigo César Mêmolo Junior produz o Jornal Literário "Tentativa". Tentativa foi impresso na gráfica do jornal O Atibaiense e logo ganhou grande repercussão nacional e internacional, sendo considerado na época o melhor jornal literário do Brasil. Em seu primeiro número, Tentativa teve a apresentação de Oswald de Andrade e o logotipo desenhado pelo pintor Aldemir Martins.

Uma das grandes repercussões do jornal foi a publicação na edição nº 4, em outubro de 1949, de uma entrevista com o escritor Graciliano Ramos, falando sobre os textos e poetas da época. Graciliano nunca havia dado nenhuma declaração à imprensa até então. O jornal tinha entre seus colaboradores os maiores nomes da literatura nacional, seja da nova geração, seja das gerações mais antigas e já consagrados como Sérgio Millet e Oswald de Andrade; ou em processo de consagração, como Murilo Mendes e Otto Maria Carpeaux. Aparecem ainda, compondo a extensa lista de colaboradores, nomes como Guilherme de Almeida, José Lins do Rêgo, Murilo Mendes, Vinícius de Moraes, Henriqueta Lisboa, Graciliano Ramos, Lêdo Ivo, Emílio Moura, Lygia Fagundes Teles, Autran Dourado, José Paulo Paes, Décio Pignatari e muitos outros, com participações especiais ou inéditas como Hilda Hilst, publicada ali pela primeira vez. E ainda contava com correspondentes estrangeiros em Paris, Buenos Aires, Lisboa e nas principais capitais brasileiras. Foi publicado até maio de 1951, em treze edições bimestrais, sendo as duas últimas realizadas totalmente pelo amigo César Mêmolo Junior. “Tentativa” pode ser considerada o maior bem cultural erudito do município de Atibaia.

Ainda nesse período o grupo de artistas locais liderados por André Carneiro lançam mais três livros de poemas além de “Angulo e Face”Donozor Lino apresenta “Cartas de Marear”, que tinha a capa desenhada pelo próprio André Carneiro. César Mêmolo Junior lança “Permanência e Tempo”, com desenho na contracapa também de André Carneiro e o miolo ilustrado com linóleos de João Luiz Chaves. E por fim Dulce Carneiro, irmã de André Carneiro, com “Além da Palavra”, livro que trazia como ilustração o retrato da autora desenhada pelo amigo Aldemir Martins. Todos editados pelo Clube da Poesia, com exceção de “Cartas de Marear”. Essas iniciativas chamaram a atenção de artistas e intelectuais da época para a pequena cidade de Atibaia, a ponto de Oswald de Andrade nomear uma “Escola de Atibaia”, em associação a Escola Mineira na literatura. O artigo saiu em sua coluna “Telefonema” onde Oswald de Andrade traça elogios aos poetas locais escrevendo tratar-se do “melhor esforço de cristalização de nossa poesia atual”.

A partir de 1950 André Carneiro volta seu interesse para a fotografia, cinema e artes plásticas. Conhece artistas ligados ao Cine Foto Clube Bandeirantes como Eduardo Salvatore e passa a fotografar com regularidade. No cinema realiza o curta-metragem “Estudo de Continuidade e Movimento”, premiado no 3º Concurso Cinematográfico Nacional e recebe o Prêmio Estímulo de melhor filme gênero experimental, representando o Brasil em mostras de cinema no Reino Unido, Itália, França e Holanda. Com o amigo César Mêmolo Junior funda o "Clube do Cinema", cuja proposta era exibir e comentar filmes de arte. As reuniões ocorriam no recém-inaugurado Cine Itá.

Para fundação do Clube de Cinema a dupla contou com Aldo Bonadei, Geraldo de Barros, Lothar Charoux e Luiz Chaves para organizar a "Primeira Exposição Coletiva de Pintura de Atibaia". Foi um evento sem precedentes em cidades do interior. Para Atibaia vieram pinturas, gravuras e desenhos originais de Aldo Bonadei, Guignard, Oswald de Andrade Filho, Lothar Charoux, Frans Weissmann, Geraldo de Barros, Livio Abramo, João Luiz Chaves, Aldemir Martins, Odeto Guersoni, Carlos Scliar, Oswaldo Goeldi, Atthos Bulcão, Cicero Dias, Di Cavalcanti, Flávio de Carvalho, Flexor, Milton Dacosta, Anita Malfatti, Quirino da Silva, Maria Leontina, Sergio Milliet, Walter Levy e outros. Atualmente são poucas as instituições que podem pagar sequer o seguro dessas obras! Nesse mesmo ano foi condecorado pelo governo francês com a Medalha de Prata da Cidade de Paris, da Societe D’Education et Encouragement por suas atividades de intercâmbio cultural e cooperação artística entre Brasil e França.

Em 1951 andando numa Praça de São Paulo realiza a foto “Trilhos”.  Anos mais tarde ela foi escolhida para identificar a criação do Modernismo Fotográfico no Brasil e André Carneiro passou a ser considerado um dos precursores da Fotografia Moderna no Brasil, ao lado de fotógrafos como Thomas Farkas, Geraldo de Barros, German Lorca, Eduardo Salvatore e outros. Esta foto encontra-se em exibição permanente no Tate Gallery, em Londres. No cinema realiza os curtas “Solidão” e “Último Encontro”. O primeiro representou o Brasil no 13º Concurso Internacional de Cinema Amador, realizado em agosto de 1951, em Glasgow, Escócia, sendo depois exibido na França e Itália. Nesse ano é feito “Membre D’honneur” da Academie Ansaldi, de Paris.

De 1952 a 1960 intensifica sua produção fotográfica, quase sempre tendo a cidade de Atibaia e seus moradores em suas pesquisas estéticas. Passa a pintar com maior frequência e aproveitando de sua habilidade como exímio cortador de vidro, adquirido na Loja Recaredo, desenvolve o que chamou de "Pintura Dinâmica". A proposta pode ser associada ao que ficou conhecido como cinetismo, ou arte cinética, que foi uma corrente artística do século XX cuja principal característica foi o uso do movimento ou a ilusão do movimento. A Pintura Dinâmica consistia em compartimentos de vidros lacrados, cujo interior continham diferentes produtos químicos, que sofriam mudanças visuais quando manipuladas. A mudança ocorria em função das diferentes reações químicas. Passou também a se interessar pelo hipnotismo e a escrever contos, que mais tarde seriam classificados como de ficção cientifica.

A partir de 1960 até 1970, passa a colaborar no "Suplemento Literário", caderno semanal do jornal O Estado de São Paulo, com contos, poesias, críticas e fotografias. Dirigido por Antônio Cândido e Décio de Almeida Prado, o Suplemento tinha como preocupação a ideia de garantir na imprensa um espaço regular para o debate de ideias e a divulgação de autores novos e consagrados, especialmente os escritores brasileiros. Seus estudos e pesquisas na parapsicologia e hipnose, realizados no Instituto Quevedo e outros, ganharam destaque.

Em 1961 seu conto “O começo do Fim” foi incluído na Antologia Brasileira de Ficção Cientifica, editado por Gumercindo Rocha Dória. A partir dessa edição criou-se a chamada "Geração GRD" marco da ficção científica brasileira dos anos sessenta. Além de André Carneiro havia contos de Antônio Olinto, Rachel de Queiroz, Fausto Cunha, Dinah Silveira de Queiroz e outros. Pouco depois outro conto: “A organização do Dr Labuzze” é incluído na antologia “Histórias do Acontecerá”, também editado pelo Gumercindo Rocha Dória.

Em 1963 lança “Diário da Nave Perdida”, com capa também desenvolvida por ele e a partir dai passa a fazer inúmeras capas para livros de outros escritores, principalmente para a “Editora do Autor”. Nesse livro o conto “A Escuridão” ganhou destaque da crítica, tornando-se sua obra mais conhecida, com tradução para vários países. Muitos consideram esse conto o inspirador do romance “Ensaios sobre a Cegueira” de Jose Saramago, editado anos depois, por sua semelhança temática. A edição recebeu o prêmio de Melhor Livro do Ano, do Departamento Cultural da Prefeitura de São Paulo, além de entrar na Antologia The Best of the Year 1972, coletânea organizada por Harry Harrison e Brian Aldis lançada pela editora americana Putnan figurando ao lado de mestres internacionais. No mesmo ano lança o livro "O Mundo Misterioso do Hipnotismo". Tornou-se um dos poucos membros brasileiros do Parapsychological Association, a mais respeitada instituição internacional de Parapsicologia, com sede nos Estados Unidos.

Em 1966 publica seu segundo livro de poemas: "Espaçopleno", pelo Clube de Poesia. Mais que um livro, Espaçopleno é um objeto de arte de confecção quase artesanal. A concepção visual foi do artista plástico uruguaio Luis Díaz, que separou cada poema em folhas avulsas acondicionadas numa caixa. As xilogravuras que ilustram os poemas foram impressas no processo tipográfico que imprime um caráter único a cada exemplar. Pela importância alcançada e sua reduzida quantidade, o livro encontra-se arquivado como “obra rara” na Biblioteca Nacional. O livro recebeu o Prêmio “Alphonsus de Guimaraens”, da Academia Mineira de Letras e tem o prefácio do escritor Domingos Carvalho da Silva. No mesmo ano publica seu segundo livro de ficção cientifica: “O Homem que Adivinhava”, pela Editora Edart, e foi premiado como “Livro do Ano”, pela Câmara Municipal de São Paulo.

Em 1967 publica “Introdução ao Estudo da Science Fiction”, pelo Conselho Estadual de Cultura. Esse ensaio foi o primeiro estudo em português apresentando e discutindo alguns dos principais temas relacionados à ficção científica e recebeu o Prêmio Literário Câmara Municipal de São Paulo.

Em 1969, dirigiu os trabalhos no histórico “Simpósio de FC”, um evento integrante do 2º Festival Internacional do Filme, organizado por José Sanz, que aconteceu no Rio de Janeiro, com promoção do Instituto Nacional do Cinema, do Ministério da Educação e Cultura e da Secretaria de Turismo do então Estado da Guanabara. As palestras e exibições de filmes do Simpósio aconteceram no Teatro Maison de France. André Carneiro contava com orgulho ter assistido ao filme "Metrópolis" ao lado de Fritz Lang, assim como "2001 – Uma Odisseia no Espaço" ao lado de Arthur C. Clark, convidados do Festival, entre outros grandes nomes da literatura mundial de ficção cientifica, como Alfred Bester, John Brunner, Harry Harrison, A.E. Van Vogt, Frederick Pohl, Brian Aldiss, Poul Anderson, Harlan Ellison, Robert A. Heinlein, Damon Knight e Forrest Ackerman.

Em 1970 foi Diretor de Cultura e Turismo da Prefeitura de Atibaia, na gestão do Prefeito Olavo Amorim Silveira onde trabalhou junto ao Governo de Estado a imagem de Atibaia como cidade turística. São dessa época uma série de cartazes, programas e objetos promocionais que foram distribuídos pelo país. Participou ativamente na implantação da "Feira de Produtos e Artesanato" que ficava na entrada da cidade e realizou mudanças estruturais no maior evento cultural da época: O "Encontro de Artes Plásticas", introduzindo o Prêmio Aquisitivo, gerando um rico acervo a cidade.
A partir de 1971 passa a ser diretor de propaganda da Companhia Cacique de Café Solúvel, onde dirigiu o lançamento do Café Pelé, fez inúmeros comerciais para a televisão e curtas metragens, dirigindo celebridades como Pelé e o piloto Émerson Fittipaldi.

Em 1972 deixa Atibaia para morar em São Paulo, onde fica até 1999 quando muda para Curitiba, cidade onde faleceu em 2014. André Carneiro viveu 92 anos de intensa produção artística. Após sua saída de Atibaia publica: “Manual de Hipnose”; “Piscina Livre”; “Pássaros Florescem”; “Amorquia”; “A Máquina de Hyerônimus”; “Quânticos da Incerteza”; “André Carneiro: Fotografias Achadas, Perdidas e Construídas”, além de “O Teorema das Letras” e “André Carneiro Fotografias” (póstumas). Suas obras foram traduzidas para 16 países, tema de mestrado e estudos em inúmeras universidades no Brasil e no exterior. Produziu roteiros para cinema e televisão. Fez colagens, esculturas e fotografias, mesmo com a pouca visão dos últimos anos de vida. André Carneiro deixou para Atibaia e para o país um enorme legado cultural e um exemplo de vida: Seu profundo entusiasmo pela vida, pela arte e pelos encantos do mundo.

Márcio Zago - Fundador do Garatuja e curador da Semana André Carneiro 

domingo, 14 de janeiro de 2018

André Carneiro e a literatura em Atibaia

Publicações dos poetas locais...












No final da década de quarenta e inicio de cinquenta  Atibaia viveu um momento de grande efervescência literária. Consequência do movimento cultural de vanguarda iniciado no período pós-guerra que tinha André Carneiro como seu principal mentor. O mundo deixava para trás as agruras da 2ª Guerra Mundial e o clima era de esperança. Atibaia, recém-transformada Estância Hidro-Mineral, contava na época com cerca de 25.000 habitantes, sendo somente 7.000 moradores da zona urbana. Nesse contexto um grupo de jovens artistas, de olho nas novas correntes intelectuais europeias, propunha colocar a provinciana e conservadora cidadezinha no mapa do mundo. E conseguiram!

O grupo, além de André Carneiro, tinha entre seus componentes as irmãs Dulce, Maria Francisca, Odila e Odete Carneiro. Tinha ainda César Mêmolo Junior e seus primos Elisa Helena, Maria Amélia e Amadeu Lana. Luiza Lima de Oliveira Chaves e João Luís Chaves completavam o grupo. Outros artistas também se juntaram a eles por determinado tempo, como Oswaldo Barreto Filho e Aldemir Martins. Uma das características desses jovens era atuar em diversas áreas: literatura, cinema, fotografia e artes plásticas. Em todas deixaram importantes legados que gradativamente vem à tona, revelando e afirmando a importância dessas ações como fundamentais na formação da identidade cultural do município. Se hoje Atibaia é conhecida e reconhecida por suas ações culturais, muito se deve a esse grupo.

Na época o jornal desempenhava importante papel na divulgação da produção literária, e em Atibaia não foi diferente. “O Atibaiense”, existente desde 1901, publicava com frequência a produção dos escritores locais e também de fora, principalmente nos Cadernos de Leitura, encarte semanal que surgiu pelo fato do jornal, nesse período, pertencer ao pai de César Mêmolo Junior- escritor, poeta e um dos principais integrantes do grupo. Em 1946 surge “A Gazeta de Atibaia”, sob a direção de Helvécio Scapim, que também abria espaço a produção literária local, chegando inclusive a disponibilizar sua gráfica à edição do livro “Cartas de Marear”, de Donozor Lino.

Em 1946 André Carneiro, César Mêmolo Junior, Donozor Lino e Helvécio Scapim deram origem a um pequeno acervo literário no então existente Clube Comercial. As doações de outras pessoas engrossaram o acervo, que propunha ser aberto ao atendimento da população. O empreendimento cresceu sendo mais tarde doado à Sociedade Amigos de Atibaia, que depois transferiu a Prefeitura, originando a atual Biblioteca Publica. Em 1976 a Câmara Municipal nomeia Biblioteca Pública Joviano Franco da Silveira, em homenagem ao poeta atibaiano  e um dos fundadores da primeira Biblioteca da cidade, o Gabinete de Leitura, que existiu no inicio do século XX e que funcionava de maneira fechada, com pagamento de mensalidade dos associados.

Em abril de 1948 acontece em São Paulo, na Biblioteca Municipal, o 1º Congresso Paulista de Poesia que tinha entre os participantes Péricles Eugênio da Silva Ramos, Domingos Carvalho da Silva, Mário da Silva Brito, Geraldo Vidigal e outros. O discurso de abertura foi do crítico Antônio Cândido. André Carneiro teve intensa participação nos debates, fato que chamou a atenção de Oswald de Andrade, também presente no evento. A partir daí tornaram-se grandes amigos, passando Oswald de Andrade a visitá-lo com frequência em Atibaia. Na ocasião André Carneiro foi eleito Secretário do 1º Congresso Paulista de Poesia. No mês seguinte, por deliberação do próprio Congresso, foi criado em São Paulo o Clube da Poesia, que tinha em seus quadros importantes expoentes da poesia moderna como José Geraldo Vieira, Sérgio Milliet, Menotti Del Picchia e outros. O poeta e ensaísta Cassiano Ricardo foi eleito Presidente e anos depois André Carneiro seria Diretor de Divulgação do Clube da Poesia que tinha a proposta de promover conferências, cursos e publicações.

Pouco depois André Carneiro e o grupo de artistas locais organizam o Clube de Poesia de Atibaia, associado ao Clube de Poesia de São Paulo. Oswaldo Barreto Filho foi escolhido Presidente. Oswaldo Barreto foi outro jovem artista da cidade bastante atuante na área cultural, dedicando-se mais tarde inteiramente ao teatro onde ganhou projeção na área. O intercambio rendeu inúmeros frutos. Em agosto de 1948 o Clube de Poesia local, o jornal O Atibaiense e o Ginásio Atibaiense promovem um recital de poesia trazendo para cá uma caravana de intelectuais paulistas filiados ao Clube de Poesia de São Paulo. Estiveram presentes Oswald de Andrade, José Geraldo Vieira, Aldemir Martins, Jamil Almansur Haddad entre outros. O evento aconteceu no Salão Nobre do recém-inaugurado Ginásio Atibaiense (hoje Escola Major Juvenal Alvim).

Em 1949 é lançado o encarte literário “Tentativa”, rodado na gráfica do Jornal O Atibaiense.  Só ele bastaria para destacar a cidade como importante polo cultural da época no segmento da literatura, e não só da região, pois sua fama extrapolou as fronteiras nacionais.  Inacreditavelmente “Tentativa” reuniu em nossa cidade o que havia de mais significativo na literatura nacional mesclando autores consagrados aos novos expoentes que hoje fazem parte da cultura nacional. Exemplos não faltam: Sérgio Milliet, Murilo Mendes, Otto Maria Carpeaux, Guilherme de Almeida, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Vinicius de Moraes, Lygia Fagundes Telles, Décio Pignatari, Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Goulart e tantos outros. É bom destacar que a participação de muitos desses artistas não foram meramente formais, mas com envolvimento e paixão. Pela importância que teve no meio literário nacional o jornal Literário “Tentativa” pode ser considerado nosso maior patrimônio cultural erudito. Sua importância está ligada ao fato de ser um legítimo representante da chamada Geração de 45, ou a terceira geração modernista.

Ainda nesse período foram lançados quatro livros de poesias na cidade: Em julho de 1949 André Carneiro lança o livro “Angulo e Face”, com desenho na contra capa de Aldemir Martins. Cinco meses depois foi a vez de Donozor Lino com “Cartas de Marear”, que tinha a capa desenhada pelo próprio André Carneiro. No ano seguinte, 1950, foi César Mêmolo Junior que lançou “Permanência e Tempo”, com desenho na contracapa também de André Carneiro e o miolo ilustrado com linóleos de João Luiz Chaves. E por fim, em 1953, Dulce Carneiro, irmã de André Carneiro, com “Além da Palavra”, livro que trazia como ilustração o retrato da autora desenhada pelo amigo Aldemir Martins. Todos editados pelo Clube da Poesia, com exceção de “Cartas de Marear”. Nos Cadernos do Clube de Poesia, além dos autores citados, foram publicados outros escritores iniciantes na época, como Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Paulo Vanzolini e outros.

Essas iniciativas chamaram a atenção de artistas e intelectuais da época para a pequena cidade de Atibaia, ao ponto de Oswald de Andrade nomear uma “Escola de Atibaia”, em associação a Escola Mineira na literatura. O artigo saiu em sua coluna “Telefonema”, publicado entre 1944 e 1954, no Correio da Manhã, onde Oswald de Andrade traça elogios aos poetas locais escrevendo tratar-se do “melhor esforço de cristalização de nossa poesia atual”.

São fatos como esses que atestam e afirmam a importância de André Carneiro para o município e justifica plenamente o novo espaço cultural levar seu nome. Trata-se de uma justa homenagem. André Carneiro deixou como legado a identidade cultural do município associado ao que de melhor se produziu no país. Poucas são as cidades que tem esse privilégio. Cabe aos artistas, homens públicos e a população em geral preservar e dar continuidade a esse conceito. Mais que cultura, o que queremos é cultura de qualidade!

Márcio Zago, fundador do Garatuja e curador da Semana André Carneiro.
Artigo publicado nos jornais O Atibaiense e Jornal da Cidade dia 13 de janeiro de 2018