domingo, 5 de maio de 2019

A Escola de Atibaia

Silvio Alexandre

Em sua coluna, "Telefonema", de 11 de outubro de 1949, Oswald de Andrade exaltava a existência de um movimento literário na cidade de Atibaia, liderado por André Carneiro e sua irmã Dulce, junto com César Mêmolo Júnior. Assim escreveu: “Como ficou a Escola Mineira na nossa literatura, ficará sem dúvida, o que eu chamo de Escola de Atibaia, o melhor esforço de cristalização da nossa poesia atual. Parece fábula, mas não é. No cocuruto da serra de Juquerí (este nome indica a capital da loucura paulista), no minúsculo burgo de Atibaia, três poetas existem. São eles: Dulce e André Carneiro e César Mêmolo Júnior. Para aí um ano atrás fomos arrebanhados pelo Clube da Poesia num show de que foi astro José Geraldo Vieira. Desde então o nosso contato com os três poetas atibaienses tem sido contínuo”. 









Com certeza, é muito curioso imaginar como um reduzido grupo de artistas, vivendo numa antiquada cidadezinha com pouco mais de 20.000 habitantes, conseguiu realizar um movimento cultural tão importante a ponto de extrapolar os limites do tempo e do espaço. Esses artistas sonhavam em dotar de contemporaneidade a provinciana Atibaia. César Mêmolo recorda que no final dos anos 1940, eram um grupo de jovens em busca de opções intelectuais na cidade recém-transformada em estância hidromineral. A proximidade com São Paulo e o fato do seu pai receber artistas e escritores em seu hotel campestre Estância Lynce facilitou o contato com a vanguarda paulistana. Expressão maior desse movimento foi criação em Atibaia, do jornal literário Tentativa, em abril de 1949, pelas mãos de André Carneiro e sua irmã Dulce junto com César Mêmolo Júnior. O jornal alcançou grande repercussão nacional e internacional sendo considerado, na época, o melhor jornal literário do Brasil. Uma das razões do seu sucesso foi sua isenção das polêmicas modernistas e por abrir espaço a várias tendências dos escritores das gerações 20, 30 e 45 e poetas em fase de ascensão. Além disso, sua distribuição era feita diretamente para os intelectuais e livrarias das grandes cidades e de outros países. Um jornal de Lisboa publicou um artigo afirmando que “em uma pequena cidade perto de São Paulo havia um movimento literário mais importante do que o da capital de Portugal”. Em seu primeiro número, que era impresso em Atibaia na Tipografia Contezini, teve a apresentação justamente de Oswald de Andrade e o logotipo desenhado pelo pintor Aldemir Martins, que também ilustrou quase todos os outros números ao lado de celebrados nomes do cenário artístico acional. Uma das grandes repercussões do jornal foi a publicação na edição nº 4, em outubro de 1949, de uma entrevista com o escritor Graciliano Ramos, falando sobre os textos e poetas da época. Vale ressaltar que Graciliano nunca havia dado nenhuma declaração à imprensa até então. Tentativa teve entre seus colaboradores os maiores nomes da literatura nacional da época, seja da nova geração, como Domingos Carvalho da Silva, Lorival Gomes Machado, Cassiano Nunes, seja das gerações mais antigas com seus autores já consagrados como Sérgio Millet e Oswald de Andrade ou em processo de consagração, como Murilo Mendes e Otto Maria Carpeaux. Aparecem ainda, compondo a extensa lista de colaboradores, nomes como Guilherme de Almeida, José Lins do Rego, Murilo Mendes, Vinícius de Moraes, Henriqueta Lisboa, Lêdo Ivo, Emílio Moura, Lygia Fagundes Teles, Autran Dourado, José Paulo Paes, Décio Pignatari e muitos outros, com colaborações especiais ou inéditas como Hilda Hilst, publicada ali pela primeira vez, para citarmos apenas alguns. E ainda contava com correspondentes estrangeiros em Paris, Buenos Aires, Lisboa e nas principais capitais brasileiras. Foi publicado até maio de 1951, em treze edições bimestrais. Em 2006, em uma ação conjunta da prefeitura de Atibaia e do Arquivo Público do Estado de São Paulo, o jornal foi reeditado em fac-símile, no livro A Geração 45 através do jornal Tentativa, com as principais edições impressas na época. A edição conta com artigos introdutórios do próprio André Carneiro, do professor Osvaldo Duarte, da Universidade Federal de Rondônia e do jornalista Alberto Dines, entre outros. É ainda César Mêmolo Júnior que recorda que Tentativa “não foi um acontecimento isolado, mas consequência das nossas atividades culturais na capital e em outros grandes centros. Éramos a novíssima geração do pós-guerra e enveredávamos pela literatura, pela fotografia e pelo cinema, e estávamos ligados às novas correntes intelectuais da Europa”. Em Atibaia, eles já haviam criado a primeira biblioteca pública da cidade, que originou a Biblioteca Municipal atual; participado do movimento que conseguiu para a cidade o título de Estância Hidromineral e Turística; fundado o Clube de Cinema que promovia debates após as sessões semanais; realizado a primeira Exposição Coletiva de Pintura da cidade, entre outras atividades culturais e artísticas. Além disso, se aproveitaram que o jornal O Atibaiense pertencia ao pai de César e introduziram uma edição semanal do “Caderno de Leitura”, em que publicavam seus textos e de outros autores. A seguir, decidiram criar um tabloide para publicar também autores inéditos e debates com os autores mais atuais. Nascia Tentativa que estreou como encarte, substituindo o “Caderno de Leitura”. Tentativa foi definido por seus editores como jornal “aberto a todas as tendências”. Ele surge num momento de impasse político, histórico e cultural, como observa Oswald de Andrade no texto de abertura em seu primeiro número. Um tempo diante do qual escusava qualquer posição pronta e definitiva. Enfim, um tempo de Tentativa. Com esse nome, continua Oswald, os redatores do jornal alcançavam todo o grave sentido que tomara a humana poesia desde Hölderin. Com Tentativa, salienta o professor Osvaldo Duarte, estava indicado um caminho e que define a inclusão dialética de ordem e desordem, avanço e parada, tradição e modernidade naqueles autores, que atentos à dinâmica histórica, se ocuparam da literatura e da crítica literária brasileira nas últimas décadas. Tentativa é considerado uma peça exemplar da terceira geração modernista: A Geração de 45. Após o término da Segunda Guerra Mundial com as explosões atômicas nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, começava um período de reestruturação geográfica, política e econômica que dividiu o mundo em blocos capitalistas e comunistas. Enquanto no Brasil, tínhamos o fim da ditadura de Vargas e o início de um período democrático e desenvolvimentista. Dentro desse contexto histórico acontece no país a chamada de Geração de 45, com poetas que se opõem às conquistas e inovações do Movimento Modernista de 1922. Eles negam a liberdade formal, o desleixo formal, o prosaísmo, o falso brasileirismo de linguagem, as ironias, as sátiras, o poema-piada e outras brincadeiras modernistas. Produzem uma poesia mais equilibrada e séria, procurando o restabelecimento da forma artística e bela. Não era uma volta ao passado, mas pretendia-se restaurar a poesia, livre de tais de comedimentos com uma poesia enxuta e equilibrada.  No que se refere à prosa, tanto no romance quanto nos contos, houve um profundo investimento em sondagem psicológica dos personagens, além de técnicas novas de narrativas que traziam uma quebra na frequência e na estrutura do gênero narrativo, buscando uma literatura intimista e introspectiva, com destaque para Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles. Ao mesmo tempo, o regionalismo, que era bastante aplicado durante os anos 1930, mas com uma renovação estética, adquire uma nova dimensão com, por exemplo, Guimarães Rosa e sua recriação dos costumes e da fala sertaneja, penetrando fundo na psicologia do jagunço do Brasil central, inovando na linguagem, fazendo uso intenso do discurso direto e indireto livres, além de trazer uma mudança revolucionária no que se refere à sintaxe e ao vocabulário. Para entender melhor a relação entre o Tentativa e a Geração de 45 basta lembramos que, em 1947, André Carneiro com outros escritores e poetas jovens fundou a Revista Brasileira de Poesia, justamente a divulgadora dos preceitos estéticos da Geração de 45: a revalorização da palavra; a criação de novas imagens; a revisão dos ritmos e a busca de novas soluções formais. O poeta vê na poesia, mais do que produto intuitivo, o resultado da experiência da linguagem e da existência humana. Junto com Péricles Eugênio da Silva Ramos, Domingos Carvalho da Silva, Mário da Silva Brito e Geraldo Vidigal, ele organiza o 1º Congresso Paulista de Poesia (que oficializou a Geração de 45), realizado entre os dias 29 de abril e 02 de maio de 1948, espalhados por diversos espaços na capital: o auditório da Biblioteca Pública Municipal de São Paulo (atualmente Biblioteca Mário de Andrade), o Museu de Arte Moderna (MASP), o bar do Teatro Municipal, além dos auditórios da Escola Normal Caetano de Campos e do jornal paulistano A Gazeta. Tendo sido eleito secretário do Congresso e com forte participação nos debates, Carneiro ganhou destaque e chamou a atenção de Oswald de Andrade, presente no evento junto com outros grandes escritores da época e que se tornou seu amigo, passando a visitá-lo com frequência em Atibaia. De acordo com o crítico Antônio Cândido (o convidado para fazer o discurso de abertura), após o Congresso Paulista, ocorreu um aumento expressivo de estreias em livros dos novos autores. Assim, André Carneiro teve o seu primeiro livro de poesia, Ângulo e Face, publicado em 1949, pelo poeta Cassiano Ricardo, através do Clube de Poesia de São Paulo, do qual era presidente, ganhando prêmios e homenagens com sucesso nacional. Cassiano afirmou sobre André: “Seu poder de comunicação chega a ser contundente, fere mais do que a sensibilidade à flor da pele”. E a escritora Lígia Fagundes Teles decretou: “Temos um verdadeiro poeta pela frente”. O poeta e crítico Ferreira Gullar lamenta que “a poesia sóbria e humana de um poeta como André Carneiro passe despercebida do grande público. Ângulo e Face encerra em suas poucas páginas uma deliciosa e purificada mensagem lírica, feita de angústia e melancolia. Poemas construídos arquiteturalmente, num equilíbrio de verbalismo e emoção”. Para Oswald de Andrade, a poesia de André Carneiro neste livro “é uma continuidade modelar do Modernismo numa renovada e luminosa expressão”. Dessa forma, podemos entender um pouco mais como o jornal Tentativa consolida-se rapida¬mente como veículo de divulgação literária. Segundo o professor Oswaldo Duarte, foi graças ao seu desejo e disfarce cosmopolita, como se ao olhar com dissimulado senso de superioridade e por sobre os om¬bros, deixasse ao largo a Geração de 45, de onde emergia, e fosse ter com Oswald de Andrade, em São Paulo, com Drummond e Murilo Mendes, no Rio de janeiro, e com Vergílio Ferreira, em Portugal, trazendo-os para suas páginas com colaborações inéditas, sem nenhum peso de responsabilidade ou senso de culpa. Na crítica, as relações eram igualmente incomuns. Seus colaboradores pertenciam às gerações de 20, 30 e 45 e as opiniões, não raro dissonantes, colocadas lado a lado em estranha combinação, só possível a um jornal que se valia do sotaque interiorano como ponto neutro, propício à fusão de ideias e conceito.

Texto publicado no encarte "Tentativa - 70 anos" - O Atibaiense, maio de 2019

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