sábado, 15 de fevereiro de 2020

Vinicius de Moraes em Atibaia



Caricatura de Osvalter.

Na 6ª edição da Semana André Carneiro, que aconteceu em 2019, destacamos os setenta anos do jornal literário Tentativa. Entre os inúmeros admiradores do jornal estava Vinicius de Moraes. De Los Angeles o artista enviou o poema “Balada da Moça do Miramar” especialmente para o jornal. Nesta época Vinicius de Moraes ocupava um posto diplomático como vice-cônsul em Los Angeles, cargo que abandonou em 1950, conforme sugere a carta enviada a André Carneiro em 1949.



Meu caro André
Recebi a Tentativa de vocês, e gostei de tudo. Gostei, sobretudo do entusiasmo com que vocês se atiram à empreitada, dando como resultado um jornal bastante articulado, com mais ar de coisa da metrópole que da província. Parabéns os mais sinceros. Li tudo cuidadosamente. Desde a “Apresentação” de meu amigo Oswald de Andrade, sempre Oswaldiando, até os anúncios da Confeitaria Ayrosa, de Romano & Rodrigues, à Rua José Alvim n0 148. Que vontade de conhecer Atibaia e comer queijadinha na Confeitaria Ayrosa! Com César Mêmolo Junior, você e sua irmã Dulce! Gostei dos poemas dela. Gostei do esforço de vocês, que se multiplica por aí tudo nesse mundo de terra. Tenho uma saudade feroz do Brasil daqui de Hollywood, nesta Nossa Senhora de Los Angeles de Porciúncula. Porciúncula é bem a palavra para esta cidade. Já conhecia muitos de nome, entre os que escrevem para Tentativa. Lembro-me de Ruben Muller, que me mandou excelentes pronunciamentos, por ocasião do meu debate sobre cinema com Ribeiro Couto e seus correligionários sonoros. Mas quero conhecer Aldemir Martins, César Mêmolo Junior, João Batista Conti e Donozor O. Lino, que gostaria se chamasse Nabuco Donozor O. Lino para ser perfeito. Ele que não se ofenda. Tenho uma incrível necessidade de brincadeira e de comunicação. Hollywood é uma cidade provisória e sem perspectiva. Quando eu chegar ao Brasil – espero seja o ano que vem – mande-me um convite urgente para visitar Atibaia, fazer uma conferencia, ler poemas, o que quiserem. Eu vou lhe mandar uns poucos dólares, para vocês me remeterem o jornal regularmente. Faça o que quiser desta carta. E, sobretudo, não parem Tentativa no meio. Gostaria de ajudar vocês no que fosse possível, mesmo com uma pequena contribuição. Escreva, mande suas ordens.
Sinceramente,
Vinicius de Moraes. 660 Sunset Boulevard – California U.S.A.

Balada da Moça do Miramar
Vinicius de Moraes 
(publicado no Tentativa 4)

Silencio da madrugada
No edifício Miramar...
Sentada em frente à janela
Nua, morta, deslumbrada
Uma moça mira o mar.

Ninguém sabe quem é ela
Nem ninguém há de saber
Deixou a porta trancada
Faz bem uns dois cinco dias
Já começa a apodrecer
Seus ambos joelhos de âmbar
Furam-lhe o branco da pele
E a grande flor do seu corpo
Destila um fétido mel.

Mantém-se extática em face
Da aurora em elaboração
Embora formigas pretas
Que lhe entram pelos ouvidos
Se escapem por umas gretas
Do lado do coração.
Em volta é segredo: e móveis
Imóveis há solidão...Mas apesar da necrose
Que lhe corroe o nariz
A moça está tão sem pôse
Numa ilusão tão serena
Que, certo, morreu feliz.

A vida que está na morte
Os dedos já lhe comeu
Só lhe resta um aro de ouro
Que a morte em vida lhe deu
Mas seu cabelo de ouro
Rebrilha com tanta luz
Que a sua caveira é bela
E belo é seu ventre louro
E seus pelinhos azuis.

De noite é a lua quem ama
A moça do Miramar
Enquanto o mar tece a trama
Desse conúbio luar
Depois é o sol violento
O sol batido de vento
Que vem com furor violeta
A moça violentar

Muitos dias se passaram
Muitos dias passarão
À noite segue-se o dia
E assim os dias se vão
Enquanto os dias se passam
Trazendo a putrefação
À noite coisas se passam...
A moça e a lua se enlaçam
Ambas mortas de paixão.

Ah morte do amor do mundo
Ah vida feito de dar
Ah sonhos sempre nascendo
Ah sonhos sempre a acabar
Ah flores que estão crescendo
Do fundo da podridão
Ah vermes, morte vivendo
Nas flores ainda em botão
Ah sonhos, ah desesperos
Ah desespero de amar
Ah vida sempre morrendo
Ah moça de Miramar.

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