Silvio
Alexandre foi grande amigo de André Carneiro e editor de seu romance mais
desconcertante: "Amorquia" (1991). Para homenagear o centenário de
nascimento de Carneiro organizou "Amorquia, Piscina Livre e outras
Histórias" (2022), um calhamaço que reuniu dois romances, oito contos e
três poemas do seu universo mais importante, o chamado Ciclo Libertário,
publicado pela editora AVEC. A edição também contém a biografia mais completa
de André Carneiro feita até o momento, além de uma bibliografia com mais de 300
de suas publicações no Brasil e no exterior.
Silvio
Alexandre integra o Coletivo André Carneiro, que promove a Semana André
Carneiro, evento oficial da cidade para homenagear o artista atibaiano e sua
obra. Desta vez, em sua 11ª edição, a Semana André Carneiro faz um tributo a
César Mêmolo Júnior, integrante do grupo de jovens entusiastas que realizaram
importantes ações culturais em Atibaia, nos anos 1940 e 1950.
Silvio
Alexandre mergulhou na pesquisa sobre o homenageado e apresenta agradáveis
surpresas para todos os orgulhosos atibaianos, como eu. Esse resgate às
personalidades que integraram o histórico cultural do município se faz cada vez
mais necessário, em razão das rápidas mudanças que atravessa a cidade, e para
nossa sorte contamos com pessoas como Silvio, que dia a dia se torna um grande
conhecedor da história de Atibaia.
CÉSAR MÊMOLO JÚNIOR - O Cineasta de Atibaia, por Silvio Alexandre
No final da década de 1940, César Mêmolo Júnior era um dos jovens de Atibaia que buscavam trazer para a pequena cidade a contemporaneidade dos grandes centros. Junto de André Carneiro e sua irmã Dulce, fazia parte de um grupo de jovens entusiastas que realizaram uma série de ações que marcaram a identidade cultural da cidade para sempre.
Nascido no bairro do Brás, em São Paulo, em 09 de março de 1928, César Mêmolo Jr. (ou Cesinha como era chamado), cursou o Colégio Santo Agostinho e depois a Escola de Comércio Alvares Penteado. Em 1943 seu pai, o empresário César Mêmolo (1895-1984), muda-se para Atibaia e na cidade desenvolve sólida atuação empresarial e política.
LETRAS E ARTES
Entre outras atividades, o pai de Cesinha assume oficialmente em 1945, a direção do jornal O Atibaiense (existente desde 1901), o que facilitou o lançamento do semanal Suplemento Literário Letras e Artes, em maio de 1948, idealizado por André Carneiro e César Mêmolo Jr., publicando poesia, crônicas, comentários críticos sobre, cinema, teatro, artes plásticas, estudos folclóricos, notas sociais e entrevistas com escritores.
Antes em 1946, os dois já haviam iniciado um pequeno acervo literário numa sala da Sociedade Amigos de Atibaia (SADA), criando a primeira biblioteca particular da cidade, aberto ao atendimento da população. O empreendimento cresce, sendo mais tarde doado ao SADA, em setembro de 1946, e transferido depois à Prefeitura, em setembro de 1951, dando origem a atual Biblioteca Pública Joviano Franco da Silveira.
TENTATIVA
Ligados e incentivados pelas novas correntes intelectuais europeias, César Mêmolo Jr. com André e sua irmã Dulce Carneiro criaram o Tentativa (1949), um jornal literário “de Atibaia para o Brasil”. A proposta era abastecer de atualidade a conservadora cidadezinha e colocá-la no mapa do mundo.
César Mêmolo Jr. recorda que na época “éramos um grupo de jovens em busca de opções intelectuais na cidade recém-transformada”. A proximidade com São Paulo e o fato do seu pai receber artistas e escritores em seu hotel Estância Lynce facilitou o contato com a vanguarda paulistana. Em seu primeiro número, Tentativa teve a apresentação do escritor Oswald de Andrade e o logotipo desenhado pelo pintor Aldemir Martins.
O jornal alcançou grande repercussão nacional e internacional,
sendo considerado pela crítica na época um dos melhores jornais literários do
Brasil, com correspondentes em centros culturais como Buenos Aires, Lisboa e
Paris. E contava entre seus colaboradores os maiores nomes da literatura
nacional da época, como Domingos Carvalho da Silva, Sérgio Millet, Oswald de
Andrade, Murilo Mendes, Guilherme de Almeida, José Lins do Rêgo, Murilo Mendes,
Vinícius de Moraes, Graciliano Ramos, Lêdo Ivo, Lygia Fagundes Teles, Ferreira
Gullar, Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Alberto Dines, Hilda Hilst e muitos
outros.
CLUBE DE CINEMA DE ATIBAIA
Com a intenção de inaugurar um cineclube em Atibaia, César
Mêmolo Jr. e os irmãos André e Dulce Carneiro promoveram a I Exposição Coletiva
de Pintura em Atibaia. Com a colaboração de Ruth von Ockel Diem, da sessão de
arte da Biblioteca Pública de São Paulo e organização do pintor Aldo Bonadei
(um dos pioneiros no desenvolvimento da arte abstrata no Brasil), a abertura da
exposição aconteceu no dia 28 de junho de 1950.
A Exposição contou com trabalhos originais de pinturas,
gravuras, aquarelas, xilogravuras e fotografias de representativos expoentes da
arte brasileira, como Oswald de Andrade Filho, Di Cavalcanti, Flávio de
Carvalho, Anita Malfatti, Aldemir Martins, Sergio Milliet, Lívio Abramo,
Oswaldo Goeldi e outros.
A mostra aconteceu no saguão do recém-inaugurado Cine Itá, e
marcou o início das atividades do Clube de Cinema de Atibaia. Os filmes cedidos
pela filmoteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo eram exibi dos todas as
quartas-feiras, que ficaram famosas como Sessões Especiais de Cinema e Arte,
sempre com debates ao final de cada exibição.
DIRETOR CINEMATOGRÁFICO
Atentos ao crescimento do movimento foto clubista
brasileiro, César Mêmolo Jr. e André Carneiro intensificaram o interesse pelo
cinema, participando do Cine Foto Clube Bandeirante, em São Paulo no início dos
anos 1950. Mêmolo Jr. realizou filmes experimentais em 8 e 16 mm, com A olaria,
A briga, A viúva, Saudade, Trágica Recordação entre outros. Já André participou
de mostras internacionais conquistando prêmios e elogios com curtas-metragem
como Estudo de continuidade e movimento (1950), Último encontro (1951) e
Solidão (1951), com atuações de Mêmolo Jr. como ator.
Essa experiência no cinema amador iria marcar o destino de
Mêmolo Jr. Em 1952, ele vai trabalhar na Cia. Cinematográfica Vera Cruz como
assistente de direção de Abílio Pereira de Almeida no filme Candinho (1953), de
Mazzaropi.
Em seguida, ganha uma bolsa de estudo para um curso de
direção de cinema no Centro Sperimentale de Cinematografia, em Roma, Itália,
com duração de dois anos, através do Consulado Italiano de São Paulo.
Conquistou o diploma de diretor cinematográfico com dois
documentários: Dalle Tenebre al Mare (1955), sobre o maior teleférico da
Europa, que transportou grandes cargas de pirita da cidade de Massa Marittima,
região da Toscana, até o mar; e Pistóia (1956), sobre o cemitério onde foram
enterrados os soldados brasileiros da Força Expedicionária Brasileira, que
lutaram ao lado dos Alia dos na Segunda Guerra Mundial. Pistóia recebeu o
Prêmio Estado de São Paulo (1957).
LONGA METRAGEM
Em seu retorno da Itália, César Mêmolo Jr. foi contratado
pela Brasil Filmes, onde dirigiu e foi roteirista, com Carlos Alberto de Souza
Barros, do premiado Ossos, amor e papagaios (1957). Foi um sucesso de crítica,
mas um fracasso de público. Numa entrevista de 2006, para a tese de doutorado
de Cybelle Tedesco, Lynxfilm -- uma contribuição à memória do audiovisual
paulista, (Unicamp, 2015).
Ele relata: “Vim embora e dirigi o filme de longa metragem,
Osso, amor e papagaios, baseado num conto do escritor Lima Barreto, A Nova
Califórnia. Ele ganhou dois prêmios Saci, o Prêmio Governador do Estado e o
Prêmio da Prefeitura, e foi um terrível fracasso de público”.
Desempregado então tinha duas opções: ser gerente do hotel
do seu pai ou aproveitar o início da tevê para produzir filmes comerciais.
Assim, comprou uma câmera, alugou um escritório na Avenida Ipiranga, em São
Paulo e montou uma produtora, chamada Lince Filmes Ltda. (1957). O nome vinha
do Hotel Estância Lynce, em Atibaia, pertencente a seu pai. Mais tarde, por
questões de direitos autorais, o nome passou para Lynxfilm S/A (1959). Nunca
mais deixou o cinema.
LYNXFILM
Ela foi uma das primeiras produtoras a realizar comercial
para televisão e pioneira na animação publicitária no Brasil. E a primeira que
expandiu, montando e investindo uma filial no Rio de Janeiro e outra em Porto
Alegre.
César Mêmolo Jr. conta que a Lynxfilm “entre 1957 até 1970
teve um crescimento incrível, foi a produtora que mais cresceu e eu fiz muitos
investimentos em equipamentos. A ponto de se transformar na maior produtora de
filmes de publicidade da América Latina. No festival de cinema publicitário em
Veneza de 1972, ela foi considerada a 4ª. melhor produtora de filmes de
publicidade do mundo, pelo número de filmes classificados para concorrer à
premiação”.
O potencial criativo de abrigar profissionais notáveis do
cinema, aliado ao desenvolvimento tecnológico e os reduzidos custos de produção
fizeram com que a animação tomasse destaque na produtora. Foi um dos pilares do
sucesso da Lynxfilm.
Cerca de vinte mil de peças publicitárias produzidos até o
encerramento de suas atividades enquanto produtora, em 1987 (tornando-se hoje
parte do Grupo Casablanca), mais de três mil foram comerciais animados. além de
vinhetas e filmes de 60 segundos.
ANIMAÇÃO
Foi dentro da Lynxfilm que teve início a história da
animação no Brasil com a criação do Departamento de Animação, responsável pela
formação da primeira geração de animadores publicitários brasileiros. O
Departamento introduziu várias das técnicas que se tornariam padrões na
produção brasileira de propaganda em audiovisual.
Enquanto, César Mêmolo Jr. cuidava da administração e fazia
atendimento nas agências, a presença do desenhista, chargista e animador Ruy
Perotti Barbosa (1937-2005), como sócio da Lynxfilm foi fundamental. Diretor
responsável pelas peças de animação do estúdio, seu pioneirismo e qualidade a
tornaram na maior produtora do ramo no país e abriu mercado para a produção de
filmes publicitários de tevê.
Perotti foi responsável por cerca de 1500 comerciais de tevê
e curtas-metragens clássicos. Entre tantas criações na animação podemos citar o
personagem Sujismundo, símbolo de uma campanha do Governo Federal que esteve
nas telinhas entre 1971 e 1972, como ícone para combater a falta de higiene e a
sujeira: “Povo desenvolvido é povo limpo”.
Outro sucesso foi o Variguinho, que além da animação, rendeu
uma revista em quadrinhos e produtos de licenciamento para a Varig. Ainda criou
inúmeras vinhetas para o Canal 9, assim como a marca da TV Excelsior. Em 1973,
Ruy Perotti deixou a Lynxfilm.
O uso de animação foi uma alternativa viável para otimizar o
tempo de produção da propaganda e evitar a refilmagem desnecessária de
material. Dessa forma, foram produzidos os comerciais dos Cobertores Parahyba
(1961), com música do maestro Erlon Chaves; Gotinhas da Esso (1962); das Casas
Pernambucanas (1967); dos Fósforos Fiat (1959), filmado com maquetes animadas
quadro a quadro; e tantos outros.
PIONERISMO
Outro personagem na fase inicial da Lynxfilm foi o
publicitário e diretor de criação José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni,
a quem César Mêmolo Jr. reconhece como essencial para o crescimento da sua
produtora: “foi um impulso muito grande na Lynxfilm, a participação do Boni.
Ele era chefe do departamento de rádio e televisão da Lintas, da Norton, da
Multi Propaganda e se encantou com o nosso projeto. Ele trazia uma quantidade
grande de comerciais. Foi uma colaboração fundamental pra que a Lynxfilm
pudesse continuar a crescer.”
Numa época em que as agências não sabiam fazer roteiros,
Boni criava os roteiros. Também foi o precursor da assinatura nos filmes, que
até então não existia. Foi ainda responsável pela criação dos comerciais da
Varig. Hoje considerados clássicos, fizeram parte de uma série, toda realizada
em animação e com jingles marcantes criados por Archimedes Messina, compositor
de jingles famosos para diversos outros filmes publicitários. Cada nova rota
aérea inaugurada pela Varig merecia um novo filme, com um novo jingle, como,
por exemplo, a canção Seu Cabral (1967), para a rota de Portugal e a saga de
Urashima Taro (1969), para os voos ao Japão.
Um dos primeiros comerciais exibidos em televisão foi do
desodorante Mum (1954), animação realizada por Ruy Perotti e produzida pela
Lynxfilm. Criado por Boni pela agência Lintas, ele fez o roteiro e dirigiu o
filme, tendo sido inclusive premiado.
CINEMA
Por influência de César Mêmolo Jr., a Lynxfilm voltou-se
para a produção cinematográfica. Com a próspera atividade da propaganda e o
incentivo oferecido pela estatal entre Embrafilme (1969-1990), que oferecia
grandes aportes financeiros destinados a estimular a produção e distribuição de
filmes, ele relata:
“A Lynx atingiu na área da publicidade um status e dimensões
- na época tinha quase 100 pessoas trabalhando comigo, tinha quatro equipes
completas e eu fazia em torno de 80 a 100 filmes de publicidade por mês, eu
tinha filial em Porto Alegre e tinha representantes em Recife, Fortaleza e
Salvador, então era uma produção volumosa em filmes de publicidade - eu achei
que deveria fazer longa-metragem.
Em 1970 eu estava com 42 anos e achei que tinha chegado o momento
- do muito que eu já tinha ganhado com o cinema publicitário - de contribuir
para o longa-metragem nacional, investindo, e aí nasceu o primeiro filme, que
foi o Vozes do Medo; o segundo O Predileto; o terceiro O Seminarista e aí
vieram os 10 filmes.
Depois do 3º. ou 4º. filme que a Lynx produziu por conta
própria, surgiram os convites para que a Lynx fosse a produtora de outros
longas. O primeiro deles foi O Seminarista, que coproduzimos com a Embrafilme e
com o Geraldo Santos Pereira. Depois veio o Ato de Violência, do Eduardo
Escorel. O último, já no começo dos anos 80 foi O Homem do Pau Brasil, do
Joaquim Pedro de Andrade. E então nós paramos a produção dos longas. A partir
de 1980, eu não quis entrar na era do vídeo - estava acontecendo uma transformação
com a chegada do vídeo - porque fui toda a vida um homem de cinema e eu não
entrei nessa.
A produção executiva era minha. A Lynx era a produtora,
juntamente com a Embrafilme e eventualmente com coprodutores como Joaquim Pedro
de Andrade, Eduardo Escorel, eles foram coprodutores. Eles entravam com o
roteiro, direção e a Embrafilme entrava com um valor em dinheiro e a Lynxfilm
entrava com equipe, equipamento, estúdios e assumia a produção”.
Foram dez produções: Vozes do medo (1970), O predileto (1975),
O seminarista (1976), Vereda tropical (1977), Contos eróticos (1977), As filhas
do fogo (1978), Diário da província (1978), O sol dos amantes (1979), Ato de
violência (1980), Alguém (1980) e O homem do pau-brasil (1981).
PRODUTOR EXECUTIVO
Apesar de sua formação de cineasta, os longas realizados
pela Lynxfilm, nunca tiveram a direção de César Mêmolo Jr., ele justificativa:
“A década de 70 foi um período de uma grande produção de
longa-metragem, o cinema brasileiro estava a todo vapor. Mas foi uma decisão
minha, eu estudei para ser diretor, mas como a Lynxfilm cresceu muito, a minha
responsabilidade como sócio majoritário da Lynx era muito grande. Então, eu não
podia largar a Lynx pra ir dirigir um filme de longa, mas em quase todos os
filmes, com algumas exceções, eu fui o produtor executivo. A produção executiva
era minha.
A Lynx era a produtora, juntamente com a Embrafilme e
eventualmente com coprodutores como Joaquim Pedro de Andrade, Eduardo Escorel,
eles foram coprodutores. Eles entravam com o roteiro, direção, a Embrafilme
entrava com um valor em dinheiro e a Lynxfilm entrava com equipe, equipamento,
estúdios, e assumia a produção. Alguns desses filmes foram rentáveis, outros
não se pagaram, mas eu diria que o saldo dos 10 filmes foi favorável.”
HOMEM DE LUTAS SOCIAIS
César Mêmolo Júnior produziu documentários e
curtas-metragens, com muitos trabalhos premiados. Representou os produtores
cinematográficos no Conselho Nacional de Cinema (CONCINE).
Uma das melhores definições e um importante reconhecimento
do seu significado foi dado por Roberto Duailibi, um dos principais
publicitários brasileiros:
“A Lynxfilm era parte da história de São Paulo. A figura
pública da Lynxfilm era o Mêmolo, que era uma pessoa muito agradável, que
negociava na base da humildade e da ausência de arrogância, segundo o meu
contato pessoal. Ele teve uma participação muito intensa na definição dos
direitos dos publicitários, que começaram na década de 50, do publicitário
criador, do diretor de arte, chamado layoutman. (...) Foi um trabalho grande
dos publicitários de origem humanista em oposição aos anunciantes e empresas
multinacionais, que não queriam saber de direitos autorais, de pagamentos de
honorários fixos, de luta concorrencial, baseado muito mais na qualidade que nas
vantagens financeiras e nesse movimento todo das décadas de 50, 60 e 70 que se
expressava na lei de 1972, o Mêmolo teve uma participação muito intensa. Ele
era um homem de lutas sociais (...).”
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