Por Alline Nakamura
André e Dulce Carneiro fizeram muitas ações, independentemente e juntos. Tanta coisa boa, em diferentes áreas, em especial as das artes. Essa fraternidade, familiar, afetiva e criativa, foi profícua para o cenário cultural brasileiro das décadas de 1940 e seguintes.
Refletir sobre estes irmãos arrojados é como tecer numa colcha de retalhos bem estruturada que não tem fim. De tecidos com diferentes cores, texturas e dimensões, alinhavados pelos pesquisadores e entusiastas, dos acadêmicos aos independentes. Dos filhos e sobrinhos destes ícones. De amigos, amigas e de quem conviveu com eles, dentro e fora de Atibaia. Escritos, relatos, documentos, publicações, imagens e muitas histórias.
Assim, para fazer um estudo mais profundo, é necessário um tempo maior, dada a abrangência em diversas linguagens artísticas desses dois artistas nascidos em Atibaia. De seus universos expandidos e vibrantes, para além de Atibaia. De suas importantes trajetórias, para além do que foi, do aqui-agora. De seus espaços-tempos neste mundo: constelares. O blog da Semana André Carneiro – evento cultural que caminha para o seu nono ano, sob coordenação do artista Márcio Zago, conta com diversos colaboradores e apoio da Secretaria de Cultura de Atibaia – é um espaço onde encontram-se em seus arquivos várias pesquisas, textos e imagens. Vale muito a pena navegar por ele.
Este é um recorte reflexivo, pontual e subjetivo, que partiu de fotografias feitas por André e Dulce. Faísca de passados que perduram no papel (com a possibilidade, via livros e arquivos, de serem digitalizadas e reproduzidas para as próximas gerações). E de um campo de meu interesse, as caminhadas urbanas. Falo de um ponto de vista de fotógrafa-artista-caminhante.
A face do povo, Sombras na ponte e Moça Caminhando
André Carneiro (1922-2014) fotografava diversos assuntos, entre eles, as procissões religiosas em Atibaia.
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A face do povo, cerca de 1960. Fotografia de André Carneiro. |
Trago aqui uma imagem, A face do povo, da década de 60, que é como se eu estivesse lá. Reconheço qual é a parte da rua que ele esteve aqui em Atibaia. Sinto-me no meio da multidão, ainda que seja pela fotografia. Reconheço-me como fotógrafa e como um pedacinho do povo que caminha. Pensei o quanto isso é transcendental e o poder da imagem de trazer à memória um tempo não vivido como se fosse hoje.
Indago-me se as manifestações populares na rua, sobretudo às de 2021 contra o atual (des)governo federal não podem ser procissões pela vida. Em que todo(a)(e)s possam estar juntos, com esperança e fé.
Em meio às guerras, um povo caminha pela sua sobrevivência, para ultrapassar fronteiras e ter uma perspectiva com mais possibilidades de seguir adiante, com dignidade e força.
Fé no pé, acredito que alguém já disse isso. Fé na vida e em dias melhores.
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Sombras na ponte, 1951. Fotografia de André Carneiro. |
E dias melhores vêm com ânimo no coração, ainda que ele, este ânimo, esteja em um cantinho, esperando crescer... Cada passo é um movimento de sua presença.
Pensei como a alegria em caminhadas banais (nada é banal, no fundo) e cotidianas, pela obra Sombras na ponte (1951), é importante nesse atravessamento do mundo. A sombra também é o duplo desse deslocamento. A sombra existe, ainda que seja ínfima sua duração. Assim como o pisar na grama, pisar no asfalto, pisar no mundo. O indício de alegria é a alegria em si, pois as sombras vêm de corpos animados – de sentimento e de vida.
Pelo posicionamento e pose corporal, do clique com a câmera fotográfica, a primeira pessoa-sombra, da esquerda para direita, é o André Carneiro. Brincar com a sombra, dançar, estar acima de um espaço para ver um horizonte mais distante... Pode ser que nem tenha sido a intenção... Muitas vezes, pode ser a visão do duplo lá embaixo que atraiu a atenção de André Carneiro. Será que foi uma cena coreografada? Ela é simples, leve e divertida.
Nos cruzamentos das diagonais, que trazem dinamismo e ritmo para a cena, acentuados pelos pequenos concretos brancos, linhas sutis e luminosas gradações monocromáticas, multiplica-se a existência perene pelas penumbras em um ambiente duro.
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Moça caminhando, 1952. Fotografia de André Carneiro. |
É dele também a fotografia Moça Caminhando (1952).
Nesse caso, é a sua irmã, Dulce Carneiro.
De acordo com Rubens Fernando Filho, pesquisador e professor, Dulce era de espírito jovial, gentil, amável, clássica e elegante. Densa, imprevisível e radical, entre outros adjetivos. Nesta foto, ela “quase que flutua entre as nuvens”. Ela, muitas vezes, foi modelo para as fotos de seu irmão e dos companheiros do Foto Cine Clube Bandeirante.
Mais do que isso, ela foi fotógrafa, jornalista, editora e poeta (uso aqui o termo de Juliana Gobbe, refutando também o termo poetisa). Para Juliana Gobbe, pesquisadora e poeta: “A obra de Dulce é realmente imagética. Constata-se em suas poesias presentes no Tentativa. A primeira delas: Música, na tarde e na noite trança os sons de Debussy e Ravel num mar fluído de fotos do cotidiano”. Gobbe diz que Dulce Carneiro “declara em vídeo que fotografia e poesia andam juntas”.
Para Rubens Fernando Filho, pode-se dizer, com “alguma certeza”, que Dulce Carneiro, “nas décadas de 50, 60 e 70, foi a primeira fotógrafa a romper com a hegemonia masculina que existia no meio fotográfico brasileiro”. Um dado importante de ser salientado. Ela foi fotógrafa corporativa, trabalhando para diversas empresas (privadas, estatais e indústrias). Prestou seus serviços para grandes agências de publicidade e para o arquiteto Oscar Niemeyer. Poesia, liberdade, rigor técnico e excelência eram norteadores de seus trabalhos.
Em sintonia com esse pensamento, em maio de 1982, houve um evento no Museu da Imagem e do Som, A mulher na fotografia, com Stefania Bril, Vania Toledo, Nair Benedicto, Claudia Andujar e Dulce Carneiro, nomes contundentes na fotografia brasileira. Na mesa redonda, de acordo com Ricardo Mendes, Dulce foi a única a trazer como referência teórica Simone de Beauvoir, autora de O segundo sexo, avançando para o debate “extramuros”. E Dulce se “recusa a se submeter ao rótulo da mulher fotógrafa e à participação em eventos sob tal recorte”.
Dulce, mais do que uma moça: uma mulher caminhando.
Após esta breve contextualização de quem foi Dulce Carneiro, retomo aqui algumas questões instigadas pela fotografia de André Carneiro.
Uma mulher que anda sozinha é, em si, um ato corajoso e de resistência, sobretudo na década de 1950. Ainda hoje o é. O espaço urbano é para todos, todas e todes. Entretanto, na prática: quando poderemos caminhar sozinhas sem nos preocuparmos com quem está atrás de nós? À noite, é possível deslocar-se sem receios?
“De acordo com uma enquete, dois terços das mulheres norte-americanas têm medo de andar sozinhas por seus próprios bairros à noite, e uma outra informa que metade das mulheres britânicas tinham medo de sair sozinha depois de escurecer e quarenta por cento se ‘preocupavam muito’ com a possibilidade de serem estupradas”, diz Rebbeca Solnit em seu livro, A história do caminhar, na página 399.
No Brasil, em reportagem de Heloisa Cristaldo para a Agência Brasil, em 20 de maio de 2016, segundo a organização internacional de combate à pobreza ActionAid, 86% das mulheres foram assediadas em público em suas cidades. E “as mulheres também foram questionadas sobre em quais situações elas sentiram mais medo de serem assediadas. 70% responderam que ao andar pelas ruas; 69%, ao sair ou chegar em casa depois que escurece e 68% no transporte público”.
O espaço urbano carrega suas singelezas, afetos, grandes momentos, belezas, durezas, cadências e hostilidades. Para muitas pessoas, o ato de caminhar requer estratégia, espírito de luta e bravura, em deslocamentos diários como para ir trabalhar e estudar. Porque nem sempre o cotidiano é tranquilo, seguro e de curta duração entre os trajetos. Seja no interior ou nas áreas capitais. O importante é ocuparmos os espaços, em qualquer tempo e hora. Que ninguém tenha medo de se locomover ao se locomover. Seja o bairro, a cidade e o país em que estiver. Uma utopia possível? Um dia, quem sabe?
Passo certo e Amanhã
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Passo certo, sem data. Fotografia de Dulce Carneiro. Comodato MASP-Foto Cine Clube Bandeirante. |
Em Passo certo, o foco de atenção está nos pés em deslocamento na diagonal. Os tons escuros da roupa trazem mais peso para os passos. No firme deslocamento do caminhante em diálogo com as sólidas formas geométricas do chão, vistas de uma perspectiva levemente de cima para baixo, o nosso campo de visão da cena se expande. Há uma leve marcação no chão, rarefeita, em que se cruzam as finas linhas que levam o olhar ao local onde situa-se a pessoa, supostamente um homem. Uma dessas linhas vem ao encontro à extremidade final do lado inferior direito do papel fotográfico. Este é o caminho a ser traçado? A intuição imagética leva-nos a crer que sim, como se fosse o desenrolar desta história. Mas no fim, não há como prever o que aconteceu. A fotografia nos dá uma pista. Uma narrativa desenrola-se neste fragmento de instante.
Um filme é formado por vários frames. Várias fotografias. Em torno de 24 a 36 instantes.
E uma história pode caber em um único frame. Uma só imagem. Imaginada por cada pessoa que vê a fotografia.
Já em Amanhã, num ambiente concreto, pergunto-me o que a menina, de pés descalços – em contato direto com o mundo – vê nas sombras, seus limites com a área iluminada desenhada com precisão? Não há uma resposta. E precisa?
Essa sombra se esmaece, mescla-se com linhas de penumbra suave, possivelmente de alguma árvore ou vegetação, pela passagem de luz em formas que permitem seu fluxo tranquilo, em um movimento circular que percorre toda a imagem. São os limites do muro. As duras arestas transformam-se em movimento e suavidade. O vestido da menina acompanha a cena.
A menina olha. Pensa. Seus pés estão estáveis no plano. Ela pode ir para onde quiser.
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Amanhã, cerca de 1957. Fotografia de Dulce Carneiro |
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Destruição para construção
De acordo com Pablo Di Giulio, Dulce Carneiro (1929-2018), na década de 1960, pouco antes de se mudar para São Sebastião, litoral norte de São Paulo, vendeu seu apartamento em São Paulo e sua “joia”: a câmera Hasselblad. Por um “desencantamento com a fotografia”, “destruiu todo seu arquivo de fotos, negativos, livros, revistas e publicações”. Por sua própria vontade, Dulce manteve-se reclusa em seu lar em São Sebastião nos últimos anos de vida.
Que artista, seja qual for sua linguagem de expressão, não teve, em algum momento, vontade de destruir suas obras?
Sumir como as pegadas na areia, como as nuvens após uma ventania...
Penso nessa destruição como parte da obra constituída de uma vida. Uma ação como o fotografar e o caminhar. Uma decisão de desapego, humildade e coragem.
Quando andamos, não há nada além do movimento, o estar no mundo.
Não é a fotografia que atesta a sua existência, o seu caminhar, a sua experiência. Podemos entender a fotografia como um documento que comprova uma ação, sim. Um vestígio. Mas não é garantia de nada. Nem de verdades.
Ela nos (re)memora. Memória é ação. Ela nos mostra o que houve. E sim, esta imagem pode tornar-se o que há e haverá. Como quando fazemos uma nova foto e sua composição está em mente.
Quando determinada luz toca sua imaginação ao relembrar de uma cena.
Quando apenas nos lembramos do que vimos e sentimos.
O real é também de memória e imaginação. Imaginação, segundo Gaston Bachelard, “nos desliga ao mesmo tempo do passado e da realidade. Aponta para o futuro”. (...) “A imaginação imagina incessantemente e se enriquece de novas imagens”.
O ato em si foi lançado ao dar um passo.
A fotografia, assim, também é um passo. Esteja onde estiver.
Essa é a forma mais simples de estar em movimento, ontem-hoje-amanhã. Vivo.
Um passo leva a outro.
O amanhã é agora.
“Os passos são como as nuvens, vêm e vão”, já nos disse Hamish Fulton.
Caminhemos. Passemos. Constelemos.
Referências:
BACHELARD, Gaston. A filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; traduções de Joaquim Moura Ramos... (et. al.). Série Os pensadores. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. P. 195 e 196.
CARERI, Francesco. Walkscapes: O caminhar como prática estética. Tradução de Frederico Bonaldo. São Paulo: Editora Gustavo Gili., 1. Ed., 2013.
CARNEIRO, Dulce. Tomorrow/Amanhã. Disponível em: < https://www.moma.org/collection/works/297277 >. Acesso em 02 mar 2022.
CARNEIRO, Dulce. Passo certo. Disponível em: < https://masp.org.br/acervo/obra/passo-certo >. Acesso em 02 mar 2022.
CARNEIRO, André. Fotografias achadas, perdidas e construídas/ André Carneiro. Organização e edição de Valdir Rocha. São Paulo: Pantemporâneo, 2009.
CARNEIRO, Mauricio Soares (org.). André Carneiro: fotografia. Curitiba: Cultural Office, 2016.
CRISTALDO, Heloisa. Pesquisa mostra que 86% das mulheres brasileiras sofreram assédio em público. Agência Brasil-EBC. 2016. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-05/pesquisa-mostra-que-86-das-mulheres-brasileiras-sofreram-assedio-em>
DULCE Carneiro. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2022. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa218617/dulce-carneiro. Acesso em: 03 de março de 2022. Verbete da Enciclopédia.
MENDES, Ricardo. Stefania Bril: crítica e ação cultural em fotografias nas décadas de 1970 e 1980. In: COSTA, Helouise (org.); ZERWES, Erika (org.). Mulheres Fotógrafas/Mulheres Fotografadas – Fotografia e gênero na América Latina. 1ª ed. São Paulo: Intermeios, 2020. p. 288 e 289.
GOBBE, Juliana. Dulce Carneiro: mulher e poesia em tempos de guerra. Tentativa (edição comemorativa), Atibaia, maio de 2019.
GROS. Frédéric. Caminhar: uma filosofia. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Ubu Editora, 2021.
SOLNIT, Rebecca. A História do Caminhar. Tradução de Maria do Carmo Zanini. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
CONVERSAS UTÓPICAS - Três autores do sexo fraco: Quem foi Dulce Carneiro? Denise Mattar, Rubens Fernandes Junior e Pablo Di Giulio. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=KfKnyAq08lA >. Acesso em 02 mar 2022.
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